segunda-feira, 11 de junho de 2012

QUEM AVISA


 
QUEM AVISA

Conta-se que um cômico célebre, em pleno espetáculo, recebeu, no entreato, um telegrama
triste, anunciando-lhe a morte do pai. Desatando as lágrimas, voltou à ribalta, em suprema
consternação, comunicando à platéia : – “Meus senhores, acabo de ser informado de que
meu pai morreu!...” Ao invés, porém, da compunção dos ouvintes, recebeu estonteantes
aplausos. O público ria gostosamente, acreditando na continuação da peça, embora o
patético a caracterizar-se no rosto angustiado do artista. Naquele instante, seu coração era
uma fonte de lágrimas, sustentando um rio de gargalhadas.
Onde a culpa do infeliz?
Há pessoas que nascem na Terra com o dom de chorar para que outros desenvolvam a
faculdade de rir.
A propósito, conheço um homem que viveu alguns anos no mundo escrevendo anedotário
venenoso, que muitos leitores consumiam, ávidos, no silêncio de salas desertas. Cavalheiros
respeitáveis e senhoras bem postas, jovens de ambos os sexos, recolhiam-se, de quando
em quando, em obscuros recantos da casa, cultivando a perfídia sorridente e a ironia
maliciosa. Liam com interesse, lembravam pessoas de suas relações, emoldurando-as nos
quadros que a leitura lhes sugeria e, não raro, cerravam a porta, a fim de viverem, mais
intensamente, as impressões recolhidas.
O pobre autor desempenhava atribuições de escriba popular. Nas ruas, nos cafés, nas
bancas de jornais, nas rodas de amigos, surpreendia todas as notas picantes, aproveitandoas
em molho de escândalo na frigideira da gramática para o consumo geral. Os fregueses
eram numerosos e, por isso, não era pequeno o trabalho das linotipos.
O comentarista alegre, contudo, se fazia rir como Triboulet, o palhaço, a fim de ganhar a
vida, no fundo de si mesmo desejava ser como Epaminondas, o tebano ilustre, que morreu
amando as realizações honestas. E mais tarde, ao apagar das luzes, ele, que vendia risos,
passou a exportar sofrimentos. Com a renovação espiritual, modificou-se-lhe a clientela.
Suas páginas não mais figuravam entre as leituras secretas guardadas a sete chaves. Eram,
agora, folhas pálidas de filosofia da desilusão, da sombra, do destino e da dor.
Encontrou, nessa fase, amizades mais sólidas. Junto daqueles que colhem as rosas da
existência humana, inumeráveis são as fileiras dos que trabalham entre os espinhos e, se
alguns espíritos jovens estão bailando despreocupados, no festim da vida carnal, são
incontáveis os corações amadurecidos que velam, súplices, nas trevas da noite. Em vista
disso, talvez, encontrou ele simpatias novas, mais claras e mais sinceras.
Mergulhado nesse campo de vibrações diferentes, transferiu-se para o castelo da morte,
onde, surpreendido, encontrou as profundas e maravilhosas revelações da vida. Renovado,
feliz, prosseguiu escrevendo para os companheiros de luta, reavivando-lhes a esperança no


naufrágio das ilusões. Como marinheiro experiente, sentindo a inesperada segurança da
praia, atirava salva-vidas aos irmãos de sonho, que se debatiam a distância, na fúria das
águas móveis e traiçoeiras.
Mantinha-se nesse labor, quando os admiradores de sua primeira fase de serviço, velhos
cultivadores da malícia humana, gritaram do alto de sua superioridade:
– Êle? impossível. Como falar do Céu, quem se agarrava freneticamente à Terra?
– É mentira! êle não tinha fé!
– Como é isso?! há subversão na ordem espiritual? a pregação do bem estará confiada aos
impenitentes da vida humana?
O pobre comentarista desencarnado começou a receber acusações e pedradas. Alguns
adversários gratuitos, se pudessem, levantá-lo-iam do túmulo, para afrontá-lo a pancadas.
Surgiram discussões, perseguições, atritos.
Impressionado e comovido com as torturas de que o amigo era vítima,, procurei-o, em
pessoa, não só para confortá-la, mas também para recolher-lhe as íntimas impressões. Não
fui encontrá-la, porém, descabelado, a gritar, como personagem de ópera, em desespero.
Revelava-se calmo, sereno, seguro de si mesmo ; e, cheio de compreensão pelas fraquezas
do próximo, terminou a palestra, esclarecendo com um sorriso:
– Não, meu amigo, não estou desalentado. Se estivesse por lá, no turbilhão, talvez fizesse
pior. Se ainda me demorasse na carne e soubesse que um homem, como eu, andava
escrevendo sobre a iluminação eterna da alma, depois da morte do corpo, admitiria tudo,
menos a realidade. Muitos me acusam, gratuitamente, classificando-me de escritor
venenoso, mas... que fazer?
Fez longa pausa, mostrou maior lucidez no olhar compreensivo e concluiu :
– Não me preocupo, agora, por mim, que tenho a felicidade de resgatar o passado. Como é
natural, todavia, preocupo-me pelos meus antigos clientes, porque se me conhecem tão
bem, dão testemunho de que me leram com atenção. Leram e gostaram. E se eu,
presentemente, trabalho para destruir a árvore que plantei, eles que se preparem diante do
futuro, porquanto é provável que quase todos tenham de vomitar os frutos que ingeriram
gostosamente .

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