segunda-feira, 11 de junho de 2012

IDENTIFICAÇÃO DO ESPÍRITO



IDENTIFICAÇÃO DO ESPÍRITO

– Corria o ano de 1581, quando um caso estranho ocorreu em Sevilha – contou-nos o
Espírito do Padre Diego Ortigosa, em agradável tertúlia fraternal.
– Desencarnara um médico atencioso e amigo dos pobres, D. Juarez Costanera y Salcedo –
continuou ele com a graça do narrador inteligente –, quando, alguns meses mais tarde,
apareceu uma jovem que se dizia assistida pela alma do esculápio, ensinando medicação à
pobreza desamparada. Encheu-se-lhe a casa humilde e tosca de famintos da saude e o
médico desencarnado atendia, de boa vontade, orientando o tratamento de criaturas
enfermas e infelizes. A donzela, convertida em intermediária, não mais encontrou tempo para
cuidar de aí mesma. As horas disponíveis eram escassas para atender a pessoas doentes e
abatidas de sua cidade e vizinhanças. Pouco a pouco, o fenômeno tornava-se conhecido a
distância e grande número de peregrinos lhe batiam à porta. Vinham de longe e queriam
possuir, de novo, a saúde, a paz, a esperança.
Corria o interessante trabalho regularmente, mas os familiares de Costanera y Sucedo não
viram com bons olhos a movimentação popular, em torno da memória do seu chefe
desencarnado.
A jovem Cecília Anteguera, que servia de médium entre o morto prestativo e as criaturas
angustiadas, tinha vida simples, atendendo às necessidades dos outros e aos seus próprios
deveres em família, mas foi denunciada à Inquisição como feiticeira.
Não tardou o encarceramento. A acusada invocou os princípios de caridade a que servia,
recorreu ao nome de Deus, amigos dedicados intercederam por ela, junto aos algozes, mas
a pobrezinha foi retida, incomunicável, para longas inquirições. A par dos beneficiários
agradecidos que pediam a sua absolvição, surgiram senhoras fanatizadas e cavalheiros
inconscientes que afirmavam tê-la visto entregando-se a noturnos sortilégios, na via pública,
ou explorando a boa fé alheia, como ladra vulgar, terminando as acusações gratuitas com o
pedido de condenação formal e imediata. Alguns chegavam a rogar lhe fosse dada a benção
da fogueira ou a graça de ser esquartejada viva, no auto-de-fé, em nome da caridade da
Igreja.
E não valeram os bons ofícios dos protetores prestigiosos.
O padre Gaspar Alfonso Costanera y Salcedo, primo do morto, estava interessado na
perseguição e, por isso, fez o possível por guardar a jovem na cela imunda. Prometia uma
verificação pessoal. Queria certificar-se. Muitos santos da Igreja haviam visto e ouvido as
almas dos mortos. E acrescentava, pedante, que esses fatos eram conhecidos desde os
patriarcas hebreus, não obstante a proibição de Moisés, que se manifestara contrário ao
intercâmbio com os mortos. Entretanto, a seu ver, aquela mulher seria uma bruxa mentirosa
e repugnante. Seu primo D. Juarez estava no Céu, gozando a companhia dos anjos e não


voltaria, a confabular com mortais desprezíveis. Para isso recebera missas a rodo e solenes
exéquias. Que motivo, perguntava ele, levaria um médico a apaixonar-se pelos doentes,
além do túmulo? Os Santos e Santas tinham visto almas glorificadas, em beatitude celeste,
mas aquela endemoninhada tinha o topete de afirmar que o seu ilustre parente continuava a
interessar-se pela medicina, depois da morte.
Não seria loucura? interrogavam os amigos da acusada. E, se fosse, não seria justo
desculpar a demente?
O padre loquaz, porém, deblaterava, irritadiço, e insistia pela prova final.
Com efeito, após longos dias de expectativa, Cecília Anteguera, abatida e enferma, trazendo
nos punhos e braços os sinais de terríveis flagelações, foi trazida a uma sala vastíssima,
onde se reuniam alguns juízes eclesiásticos, sob a presidência do Inquisidor-mor.
A pobre medianeira, sob olhares sarcásticos, rogou, em silêncio, a Deus a visita do médico
desencarnado. Não seria razoável que o Espírito desse prova de sua sobrevivência? ficaria
desamparada, perante os verdugos?
Eis que D. Juarez, o morto, se aproxima.
Transfigura-se a médium. Observando-lhe a palidez e as alterações fisionômicas, o padre
Gaspar atende a um sinal do Inquisidor-mor e pergunta, contendo a emoção:
– Estamos em presença do demônio?
A entidade sorriu, utilizando os lábios de Cecília, e respondeu:
– Estais em presença do Espírito.
– Como se chama? – indagou o clérigo.
– Não tenho nome – replicou o desencarnado –, o Espírito é universal.
E continuou o diálogo :
– Confessa que já morreu?
– Sim, já perdi o corpo físico.
– Tem uma pátria?
– Tenho.
– Qual?
– O mundo inteiro.


– Deixou alguma família na Terra?
– Deixei,
– Como se chama essa família?
Antes da resposta, os inquisidores denotavam grande aflição, mas D. Juarez respondeu sem
hesitar:
– Chama-se Humanidade.
– Vem do inferno ou do purgatório?
– Não é de vossa conta.
– Tem recomendações a fazer a pessoas do mundo carnal?
– Não devo lembrar o que me compete esquecer para o bem comum.
– Reconhece a autoridade da Igreja?
– Reconheço a eterna autoridade de Jesus - Cristo.
– Oh! Oh!... – exclamaram os circunstantes.
– Finalmente, qual a sua profissão de fé, o seu propósito? – perguntou o padre Gaspar,
exasperado.
D. Juarez, o morto, respondeu sem titubear:
– Amar a Deus sobre todas as coisas e o próximo como a mim mesmo, cultivar a verdade,
fazer o bem e colaborar na fraternidade universal.
Nesse instante, levantaram-se todos, sob grande revolta. O Inquisidor-mor recomendou o
recolhimento da endemoninhada, até ulterior deliberação, explicando-se aos sevilhanos que
coisa alguma ficara esclarecida e que o assunto não passava de farsa condenável e odiosa.
O narrador fez uma pausa mais longa, mas um dos amigos presentes, interpretando o nosso
interesse, indagou :
– E a médium? que lhe aconteceu?
– Vocês ainda perguntam? – disse o padre Ortigosa, em tom significativo – como a
Inquisição não podia punir o Espírito, queimou a intermediária, em soleníssimo auto-de-fé.
Em seguida sorriu bondosamente e concluiu :


– Cecília de Anteguera, porém, logo após entregar o corpo às cinzas, uniu-se ao Espírito de
D. Juarez, em serviço muito mais elevado e profícuo às criaturas humanas, encontrando no
sacrifício a sua melhor realização, convertendo-se ainda em devotada amiga de todos os
seus acusadores e verdugos, aos quais sempre recebeu, caridosamente, nos primeiros
degraus da passagem sombria do túmulo.

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